Em maio de 2011, usando a minha rota de escape pelo primeiro quarteirão da Rua Martiniano de Carvalho, deparei com a cena acima: a demolição de uma casinha simpática, no número 189, quase na esquina com a Rua Monsenhor Passaláqua, onde funcionava a Igreja Cristã de Graças Celestiais. Felizmente, o sinal estava fechado e consegui sacar a tempo meu celular para registrar os últimos suspiros da casa. Ela ainda está visível nos arquivos do Google Maps e na imagem reproduzida abaixo, logo antes da paisagem quase lunar do pós-demolição. No dia seguinte, tinha sobrado apenas o portão, e o que havia no terreno ao lado, de número 187, que antes tinha um alto muro na frente, também tinha vindo abaixo. Quando voltei para fotografar o portão, imaginando que talvez fosse ser conservado, ele já não mais estava lá. Os dois terrenos já estavam sendo terraplanados.
Eu ainda não sabia se viria por aí um novo templo ou um espigão. As duas alternativas eram ruins. Sim, mesmo o templo, que acabou sendo o que, de fato, foi levantado ali, pois ele é maior, sendo um polo gerador de tráfego, isso sem falar que representou a perda do que certamente era uma das casas mais antigas da rua.
Os dois primeiros quarteirões da Rua Martiniano de Carvalho, entre as ruas Humaitá e Pedroso, têm, além da Província Carmelitana de Santo Elias, que ocupa boa parte do lado par do primeiro quarteirão, vários edifícios baixos, construídos nas décadas de 1940 e 1950, e casas construídas ainda antes. Um dos exemplos está na foto abaixo, aparentemente no número 123 (o último algarismo caiu, mas deixou marcas que podem ser de um “3”). Essas casas provavelmente são contemporâneas daquela que já não existe mais.
No lado ímpar do segundo quarteirão destaca-se a Vila Itororó, conjunto arquitetônico erguido nos anos 1920, possivelmente o imóvel mais famoso da rua e de todo o bairro, lugar onde foi instalada a primeira piscina da cidade. Há ainda uma vila, na altura do número 71, onde minha sogra, Maria Elisa, passou boa parte de sua infância e adolescência. A vila resiste até hoje, mas com um portão que foi provavelmente colocado na décadas de 1990 ou 2000, como se vê na foto abaixo.
Cruzando a Rua Pedroso, no primeiro quarteirão ainda resistem algumas casas antigas, convivendo com dois prédios mais recentes, provavelmente dos anos 1970, um de cada lado da rua. A partir da esquina com a Rua Santa Madalena, e seguindo até o fim da via, na Praça Amadeu Amaral, as características da Martiniano de Carvalho modificam-se, e os hospitais Paulistano e São José passam a dividir a paisagem com prédios já construídos entre a década de 1960 e o início dos anos 1980. A partir de então, o bairro passou a ser esquecido para novos empreendimentos imobiliários.
O anúncio mais recente que encontrei sobre lançamento na região foi este abaixo, publicado n’O Estado de S. Paulo em 27 de maio de 1984. É perfeitamente possível que não tenha sido o último, já que minha pesquisa não é tão detalhada assim e eu trombei com ele meio que por acaso. Mas os apartamentos, ao menos em sua concepção, estavam mais para flats do que para apartamentos de verdade, tanto é que o anúncio gira em torno dos serviços oferecidos. Mesmo o bairro (incorretamente chamado de Paraíso) é citado como atrativo secundário, sendo a suposta “garantia” da valorização: “Paraíso. Um bairro que não tem esse nome por acaso. A vizinhança do All Free Service garante a sua valorização.” Não sei se os serviços foram mantidos até hoje. Talvez o prédio tenha virado um edifício “normal” de apartamentos. (Haveria algum morador do All Free Service que seja também leitor do Histórias Paulistanas?)
Nos últimos anos, entretanto, os lançamentos voltaram à região. O enorme terreno que abrigou o Palácio Pio XII, sede da Cúria Metropolitana até os anos 1970 e demolido no final daquela década, desde meados da década passada tem três torres enormes de apartamentos, cujo condomínio não preservou a memória do ocupante original do terreno nem no nome, hoje o pouco criativo (e geograficamente errado) “Vereda Paraíso”. Apesar de cada um dos prédios ter frente para uma das ruas que ladeiam o terreno — Martiniano de Carvalho, Artur Prado e Pio XII —, a entrada social do condomínio é na Artur Prado, ficando a Martiniano como entrada de serviço e saída da garagem, despejando dezenas de veículos ali todas as manhãs.
Mais à frente, quase na esquina com a Rua João Julião, um espigão recente aparenta ter mais de uma dezena de apartamentos em cada um de seus mais de vinte andares. Um pouco abaixo do Hospital Paulistano, do outro lado da rua, foi construído um prédio também com dezenas de apartamentos, mas que tem entrada pela Rua Artur Prado, paralela à Martiniano de Carvalho. Um prédio de escritórios, um pouco abaixo, ficou pronto na mesma época, seguindo a tendência ditada pelo complexo da Telefónica, na esquina da Martiniano com a Rua Capitão-Mor Roque Barreto.
Uma esquina pode estar prestes a representar bem as mudanças que, pelo visto, estão apenas começando na Rua Martiniano de Carvalho. Na esquina com a Rua Santa Madalena, do lado esquerdo de quem sobe, havia um estacionamento, transferido em 2011 para o terreno ao lado, na Santa Madalena. O muro permaneceu, e os portões foram fechados com tijolos. O terreno é grande o bastante para abrigar um novo prédio. Esse último quarteirão da Santa Madalena costuma ter trânsito problemático nos horários de pico, por causa do acesso à Avenida Vinte e Três de Maio e ao Viaduto Pedroso. Um novo prédio justamente ali só fará piorar essa situação. Felizmente, nesses três anos ainda não fizeram nada no terreno, que continua fechado.
Do outro lado dessa esquina, existiam três casas antigas até 2004, ano em que foram demolidas para dar lugar a um posto de gasolina. Meu pai tinha ficado sabendo dessa demolição à época e pediu que eu fosse lá fotografar, pois eu trabalhava não muito longe dali. Assim, é possível fazer um antes-e-depois dessa esquina, com a foto batida em 17 de agosto de 2004 em cima e a de 27 de maio de 2011 abaixo.
Como se pode perceber, o “ataque imobiliário” não se restringe à Rua Martiniano de Carvalho. Uma casa dos anos 1950 foi demolida, em 2010, na Rua Pio XII e uma casa noturna de “namoradas instantâneas” foi demolida , em março de 2011, na Rua Pedroso, ao lado do Pão de Açúcar. Ambas deram lugar a lindos estacionamentos, embora o da Rua Pedroso já tenha dado lugar à obra de mais um espigão de apartamentos, com o nome de “SP4U”, vendido com o diferencial de estar “a apenas novecentos metros da Avenida Paulista” — ladeira acima, diga-se de passagem.
Além disso, foram inaugurados recentemente prédios de apartamentos na Artur Prado, pouco acima da Santa Madalena, e na confluência das ruas Monsenhor Passaláqua e Sebastião Soares de Faria, em frente ao início da Rua Artur Prado, a um quarteirão de onde demoliram a antiga Igreja Cristã de Graças Celestiais. Os dois empreendimentos tomaram o lugar de estacionamentos. Uma casa bem antiga na Artur Prado, que há anos está bem escorada para não cair, segue resistindo bravamente, só não se sabe por quanto tempo. Quando ela cair — porque não é questão de se vai cair; ela vai cair eventualmente — certamente tentarão encaixar um novo prédio por ali, quem sabe fagocitando também a casa vizinha, mais recente, que abriga um cabeleireiro e um consultório de dentista.
Assim, a cara da Rua Martiniano de Carvalho e adjacências segue mudando, para pior, sem dúvida. Seus quarteirões que eram pacatos vão ganhando movimento; os que já não mais eram pacatos vão ganhando ainda mais movimento. E a qualidade de vida dos que lá já moravam, dos que acabaram de se mudar para lá e dos que lá ainda virão morar desce ladeira abaixo, junto com a memória do bairro, que nunca foi lá muito bem conservada, como mostra o exemplo da Vila Itororó, em foto abaixo. Falam que ela será reformada e dará lugar a um centro cultural, mas ela segue sem destino definido.
A foto é de 2011, antes de colocarem tapumes ao longo de toda a frente para a Martiniano de Carvalho. Os tapumes estão lá até hoje, mas não é possível ver obras sendo realizadas por ali, seja para um centro cultural ou outro fim. Não será nenhuma surpresa se, daqui a alguns anos, houver um grande condomínio no lugar. E este, claro, não terá “Vila Itororó” no nome.
Alexandre: imediatamente após à Vila Itororó, na mesma calçada e rumo aos hospitais, havia (ou ainda há) uma casa muito simpática, recuada, salvo engano com grades amarelas ou vermelhas, algo lembrando estilo japonês. Lá morava uma família com características nórdicas, com cujas crianças brinquei na Martiniano de Carvalho nos anos 1969. Pela internet, vejo que o muro baixo com parte das grades ainda está lá. Ótima lembrança. Você conheceu?
Sim.
Nossa gostaria muito de saber mais da história dos imóveis da Rua Martiniano de Carvalho e não sei como. Hoje existem grandes condomínios ali e me disseram que existia um convento na esquina do lado impara da Rua Martiniano de Carvalho com a Rua Pio XII. É verdade? Só sei que existia um estacionamento lá. Adoraria saber!!! Obrigada