Em dezembro de 2010, o site Folha Online, pertencente ao jornal Folha de S. Paulo, publicou uma matéria sobre um casarão na Rua Augusta que estava sendo demolido, para dar lugar a um espigão, provavelmente com nome estrangeiro. Até aí, nenhuma novidade: casas antigas são derrubadas com alguma frequência em São Paulo. A notícia, na verdade, tinha-me sido passada um dia antes pelo Douglas Nascimento, do São Paulo Antiga, por email. Ele logo atualizou a página sobre o casarão no site com a informação da demolição.
Enquanto isso, na página de comentários da notícia na Folha Online, havia quase tantos comentários favoráveis à demolição quanto contrários. Isso, claro, não foi exatamente uma surpresa. A surpresa estava contida nos motivos alegados para defender a demolição. Veja alguns exemplos (com o português devidamente corrigido):
- “Preservar um prédio que nem tem informações históricas? Para quê? Não é uma árvore ou um ser. Melhor uma construção útil, que todos possam usar e que acabe com aquele fantasma que deixa a região insegura.”
- “Isto mesmo, São Paulo, não à velharia! Sou a favor do progresso. Tem mais é que pôr estes prédios antigos abaixo e dar lugar aos modernos. Muda tudo, novos ares!”
- “Essas coisas velhas e antiquadas só trazem nostalgia e bichos para nossa linda e moderna cidade.”
- “São Paulo já está com número alto de patrimônios históricos. Colocando um prédio de nível melhor ali melhora a região.”
- “Já vai tarde, pois aquela região necessita urgentemente de imóveis novos (…) [A] região central não pode mais conviver com atraso e descaso.”
- “Hehehe, já vai tarde! Confundir ruína com cultura… Se esses comentários valessem alguma coisa, imagine o bonde, o lixeiro de carroção de burros, telefone de manivela e outras porcarias.”
- “Ah, parem de chorar! Tem mais é que derrubar essas porcarias, mesmo. Quanto mais obras, mais empregos…”
- “Já vai tarde esse lixo! Que venham obras que reduzam a incrível deterioração da área.”
- “Velharia! Viva o progresso de São Paulo, viva!!!”
- “Muito bom! Finalmente irão dar uma destinação a um terreno que era também problema social, pelo abandono e pelas invasões. (…) Naquele pedaço, têm mesmo que sair vários prédios e construções novas, com o fulcro de acabar com as casas velhas e cortiços que por lá persistem.”
- “Na minha modesta opinião, não vejo traços artísticos significativos nesse pardieiro. Que venha uma construção moderna e clean para revitalizar, ainda mais, a região.”
- “Já tem muito casarão tombado em São Paulo. Não fará falta.”
Ninguém é obrigado a admirar todos os casarões que ainda resistem em São Paulo, e nem todo imóvel velho é necessariamente histórico. Mas é preocupante que tanta gente despreze alguma coisa pelo simples fato de ser antiga. Não é de se admirar, pois, que a memória paulistana, paulista e brasileira seja sempre colocada para escanteio. Aí vai da consciência de cada um. Alguns criticaram o processo de tombamento, no que têm razão, pois ele é, na maioria dos casos, prejudicial aos donos dos imóveis, que se veem impedidos até de fazer reformas revitalizadoras. O problema, aí, é do processo, não do tombamento em si. Está na hora de mudá-lo.
Os comentários que defendem a gentrificação da região — incluindo um que está mais para higienização social pura e simples — ignoravam um grande problema. Um prédio naquele terreno adicionaria dezenas de novos automóveis ao trânsito já caótico das ruas Augusta e da Consolação. Também não se tem notícia de que a infraestrutura elétrica, de água e de saneamento básico da região tenha sido preparada para receber um imóvel que representaria um aumento considerável de consumo em relação ao anterior. Isso sem falar que prédios, atualmente complexos isolados por muros, grades e cercas elétricas, não são nenhuma garantia de “revitalização” de uma região. Há exemplos que deram certo e exemplos que não fizeram diferença alguma.
Ou seja, muitos dos comentaristas defendem uma solução mágica que, na verdade, causaria outros problemas. Há quem defenda até a construção de “vários prédios e construções novas”. São Paulo e, mais especificamente, seu centro, ainda aguentam? Aguentar, até aguentam. Mas não sem impor uma grande redução na qualidade de vida de todos os moradores, não apenas dos novos.
E não é que o prédio em questão está trazendo mais um problema? O Estadão de hoje trouxe uma matéria sobre o desperdício de água que está ocorrendo ali. Segundo o repórter Diego Zanchetta, são centenas de litros despejados na sarjeta a cada quinze minutos. Toda essa água vem do lençol freático que passa sob o edifício. “Nem que eu tivesse uma caixa d’água de cinquenta mil litros daria para segurar o tanto de água que brota do lençol [freático] que está embaixo da nossa garagem”, justificou o gestor do condomínio, na reportagem.
O governo estadual teria garantido que não há ilegalidade no procedimento. Possivelmente, não há, mesmo, mas isso demonstra o nosso descuido para com o meio ambiente, especialmente no que se refere a esses empreendimentos que surgem em nossa cidade como se brotassem de esporos. Para construir a garagem subterrânea, escavaram até o nível do lençol freático. Se a construtora sabia que ele existia, é uma irresponsabilidade; se ela não sabia que ele existia, também é uma irresponsabilidade.
Mas as construtoras já têm até uma técnica para esses casos: basta fazer como fizeram na Augusta com a Antônia de Queirós e jogar na sarjeta. Outro exemplo de que me lembro neste instante é uma obra na Alameda Lorena, em frente ao Colégio Assunção. Ali, há um agravante, que é a ausência de inclinação na rua, e o desperdício forma alagamentos na pista da direita, mesmo quando o tempo está bem seco.
Numa época em que o gerenciamento de recursos hídricos é cada vez mais importante, é surpreendente que seja dada tão pouca atenção aos lençóis freáticos da cidade, que segue crescendo sem que seja dada atenção a todo o impacto desse crescimento.