Demolições na Carlos Sampaio em 2010

Casas demolidas na Rua Carlos Sampaio

Casas demolidas na Rua Carlos Sampaio

[dropcap]F[/dropcap] oi minha mulher que me avisou, em agosto de 2010: apa­ren­te­mente estavam demo­lindo duas casas antigas na Rua Carlos Sam­paio, em frente à esquina com a Rua Fausto Ferraz. Eu quis passar lá para bater fotos. Já era noite, mas quis “garantir”. De uma das casas, con­segui uma foto razoável, vista aí em cima. Da outra, com muitas árvores na frente, não houve como. Por isso, voltei lá na manhã seguinte. A da direita, a mesma que foto­grafei na noite anterior, era uma can­tina. A placa que lá existia até pouco tempo antes estaria atrás dos tapumes, isso se ainda existisse. Não sei quando o res­tau­rante deixou de fun­ci­onar — em 2006, sei que já estava fechado. Já a da esquerda parecia ser mais antiga (ou menos refor­mada), com vários frisos nas colunas e janelas.

[pullquote-right]As fotos desta página são os últimos registros fotográficos dessas duas casas[/pullquote-right]Minha missão fotográfica acabou tendo alguma importância, pois são os últimos registros dessas duas casas. Os terrenos onde elas ficavam foram unidos, e lá está quase pronto, agora em 2014, um prédio residencial. E não foi fácil foto­grafar nenhuma das casas: em uma, as árvores difi­cultavam a visão; na outra, os tapumes assumiam essa função. E, cá entre nós, eu pre­feria que as árvores fizessem isso. Mas, feliz­mente, as grades de uma das casas e do vizinho da outra eram espa­çadas o bas­tante para que a câmera pas­sasse por elas. Sim, ainda era per­fei­ta­mente pos­sível que estivessem apenas refor­mando as casas, mas não parecia nada pro­vável, até porque a janela da antiga cantina tivera sua vene­ziana arrancada naquela noite. Não era um bom sinal.

A antiga can­tina, que devia ficar mais ou menos no número 83 da Carlos Sampaio, parecia ser mais nova que a vizinha — ou talvez apenas menos refor­mada. Também de frente para a esquina com a Rua Fausto Ferraz, ela ostentava o número 75 em sua frente. Não parecia ter sido usada para nada além de moradia, embora parecesse aban­do­nada já fazia algum tempo. Havia um pouco mais de esperança em relação a ela, por não ter ainda um tapume à sua frente. Esse pouco a mais de esperança, entretanto, não resistia a um olhar mais de perto, para além das árvores no quintal da frente, que escondiam da maior parte das pes­soas o que se passava por ali.

A Rua Carlos Sam­paio, que se estende apenas da Rua Treze de Maio à Ave­nida Pau­lista por três quar­tei­rões, não é um lugar onde o comércio pro­li­fere. A não ser pelo quar­teirão pró­ximo à Pau­lista, a rua é predominantemente residencial. Um bom exemplo dessa vocação é uma loja de roupas próxima das duas casas demolidas. Só na última década, no local também funcionaram uma clí­nica de fisi­o­te­rapia e um salão de beleza. Como já não havia casas na rua servindo como moradia, a não ser que se con­si­derasse uma vila, que sai da rua no lado par pouco mais adi­ante, era muito fácil excluir a possibilidade de que as casas estivessem sendo reformadas com a intenção de que alguém morasse lá.

Por outro lado, a rua é calma em boa parte do tempo e tanto parecia como ainda parece muito atra­ente para cons­tru­toras levan­tarem um espigão. Antes de levantarem o empreendimento que substituiu as duas casa, havia apenas um prédio novo na rua, cuja obra ficou aban­do­nada por anos e só no início desta década foi concluída. Os outros são mais antigos, da década de 1980 para trás. Não muito longe dali, na Rua Artur Prado, levantaram dois pré­dios com nome estran­geiro, muitas áreas de lazer e uma área útil claus­tro­fó­bica. A região vai sendo descoberta.

Uma semana depois, passei rapi­da­mente e com pressa em frente às casas da Rua Carlos Sam­paio e fiz a triste constatação de que o telhado já tinha vindo abaixo e a demo­lição total seria coisa de dias, senão horas. No final da manhã seguinte, pois, corri até lá para bater algumas últimas imagens. “Algumas” é força de expressão, pois tirei 56 fotos, graças ao pes­soal que auto­rizou minha entrada nos dois imó­veis. Ambos sem o telhado e já com o segundo andar sem con­di­ções de ser visi­tado. Na antiga can­tina, que fica na altura do número 83, pude per­ceber que o imóvel já tinha sido bas­tante des­ca­rac­te­ri­zado por no mínimo uma reforma, deixando-o com cara, bem, de uma can­tina. Já a casa de número 75, mesmo sem telhado e boa parte das paredes, além de muito entulho espa­lhado por quase toda a área outrora útil, pre­ser­vava sua impo­nência.

Interior de casa demolida, na Rua Carlos Sampaio, 75

Interior de casa demolida, na Rua Carlos Sampaio, 75

Olhando as fotos de dentro da casa, é ine­vi­tável ima­ginar como seria a vida ali. Vê-se os restos do que pos­si­vel­mente era a sala de jantar, com pra­te­leiras embu­tidas. O que teria sido colo­cado nelas quando a casa foi cons­truída? Teria havido uma porta na frente? Qual seria a deco­ração? Não sei quanto tempo a casa teria permanecido fechada, mas acre­dito que ainda estejam vivas algumas das pes­soas que lá viveram ou ao menos fre­quen­taram. O que pen­sa­riam essas pes­soas? Será que sabem o que acon­te­ceu? (Não que haja alguma coisa a ser feita, claro.) Não passei pela expe­ri­ência de ver demo­lida uma resi­dência onde já morei. Con­si­de­rando que sou de São Paulo, talvez seja questão de tempo até eu viver isso.

Talvez pelo fato de a can­tina ter des­fi­gu­rado a casa ao lado, senti-me um pouco menos triste ao visitá-la. No térreo, boa parte das paredes internas já haviam sido reti­radas, e as paredes da parte de trás, mesmo as externas, eram todas reco­bertas por azu­lejos. Se um dia essa casa teve um estilo pare­cido com o de sua vizinha, isso já não estava mais apa­rente. Naquele dia, o salão que um dia teve inú­meras mesas abri­gava quatro pri­vadas e muito entulho. A escada, apa­ren­te­mente ori­ginal, quase des­toava do cenário de des­truição, embora já não levasse mais a lugar algum. Parte do muro que sepa­rava as duas casas já tinha ido abaixo, o que apenas realçava o que já era óbvio: a intenção de juntar os dois ter­renos.

Mais alguns dias se passaram, e poucas paredes sobravam — e, ainda assim, o que restava ainda mantinha-se impo­nente. Por algum motivo, a demo­lição da antiga can­tina seguia em ritmo mais lento. Em relação à minha visita anterior, pouco tinha mudado. Desta feita, havia ali apenas alguma ati­vi­dade na edí­cula. Não sei precisar quando as demolições foram concluídas, mas, na primeira quinzena de outubro, pouco mais de um mês após minha primeira foto, as únicas coisas que tinham sobrado das duas casas foram a marca de uma das edí­culas no muro de um prédio vizinho e parte do muro que as sepa­rava. No fim das contas, esse muro foi a última indi­cação de que havia duas casas ali.

Foi o vigia que estava no local quando bati a foto do terreno vazio que me deu a informação de que o local iria abrigar um prédio. Ainda segundo o vigia, não estaria deci­dido se esse prédio seria comer­cial ou resi­den­cial, mas já era seguro apostar que seria um edi­fício com nome estran­geiro. Se eu tivesse apostado nisso, teria ganho.

Restos das casas demolidas em 2010 na Rua Carlos Sampaio

Restos das casas demolidas em 2010 na Rua Carlos Sampaio

Alexandre Giesbrecht

Nascido em 1976, Alexandre Giesbrecht é publicitário. Pesquisa sobre a história do futebol desde os anos 1990 e sobre a história da cidade de São Paulo desde a década seguinte. Autor dos livros São Paulo Campeão Brasileiro 1977 e São Paulo Campeão da Libertadores 1992, já teve textos publicados em veículos como Placar e Trivela.

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4 respostas

  1. Thais Reder disse:

    …DESCULPE MAS EU VOU CHORAR.

  2. Ines disse:

    Alexandre, conheço cada palmo deste chão…senti imensa nostalgia. Do nosso apartamento avistávamos tanto a Cantina como a residência ao lado. Na residência por vezes havia carros que parava e um casal já idoso os recebia. Como vc ficava imaginando quantas histórias familiares aquelas paredes presenciaram. Por raras vezes o senhorzinho oriental aparecia no Jardim para seus devaneios passados. Não tive oportunidade de conversar com ele, mas do Alto do 12 andar acompanhava seus passos lentos e suas mãos que retirava folhas amareladas de arbustos que outrora fizera parte de um tempo onde o portão se abria para receber os filhos vindos do Colégio com alegria própria da meninice. Hj, daqui do interior, tive a grata satisfação de encontrar seu site e recordar desse pequenino sonho lindo que se foi…

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