Um anúncio, publicado na Folha de S. Paulo em 20 de maio de 1972, anunciava uma casa, no número 70 da Rua Haiti e começava assim: “Na melhor rua, tranquila, sem edifícios…” Tecnicamente, apenas “sem edifícios” ainda é válido para descrever a rua em 2014, embora rapidamente se perceba que até essa parte é uma meia verdade. A Rua Haiti já não é mais tranquila. Ela não tem um grande movimento de veículos ou pedestres, mas está com suas vagas de estacionamento constantemente ocupadas. Também não pode ser considerada “a melhor rua”, pois, ao longo desses mais de quarenta anos, as construtoras que compraram terrenos ali preferiram levantar prédios nas ruas vizinhas (Guarará e Caconde), usando a Rua Haiti apenas como fundos. Daí ela ainda ser uma rua “sem edifícios”: eles até estão lá, mas seus endereços são em outras vias.
A história da rua também teve outro momento em que ela foi “esquecida”. Isso foi pouco depois de sua criação, no início do século XX. Em 6 de dezembro de 1929, a Folha da Manhã publicou, na coluna “Desabafos de Juca Pato”, uma reclamação dos moradores da vizinha Rua Caconde, solicitando que os bondes que desciam a Pamplona chegassem à Caconde, não mais virando na Alameda Lorena, como faziam até então.
Os moradores da Rua Caconde, no Jardim Paulista, (…) requereram à municipalidade a colocação de um poste branco da Light na esquina com a Rua Pamplona, para o efeito das viagens de bonde. (…) O bonde “40” (…), quando vinha do Jardim, só parava quase à esquina da Alameda Lorena, no desvio que ali existe. Para os moradores da Rua Caconde, era um verdadeiro sacrifício o acesso a esse ponto, sobretudo nos dias de chuva, pois, não sendo calçada a referida via pública e não sendo calçada também a Pamplona naquele trecho, eram os moradores obrigados a patinar na lama, ameaçados de um tombo de passo a passo. A municipalidade, ao que nos informam, deu parecer favorável e transmitiu o requerimento à Light. (…)
Em lugar de colocar o poste na esquina da Rua Pamplona com a Rua Caconde, conforme lhe fora solicitado, colocou-o mais adiante, na esquina da Rua Igarahy. Esta rua Igarahy é rua só no nome e fica a meio caminho entre a Caconde e a Alameda Lorena. Possui duas ou três casas apenas, quase todas construídas no meio do mato, pois que nem as guias do passeio da Rua Pamplona foram chanfradas naquele trecho. Não tem alinhamento, não tem passeio, não tem luz e não tem casas, a não ser as duas ou três já referidas e que ficam todas do mesmo lado. O outro lado é um matagal. A Rua Caconde, ao contrário, está cheia de casas de ambos os lados e possui uma população já bastante densa.
Mas o que a Rua Haiti tinha a ver com isso? Tudo, pois ela era a antiga Rua Igarahy, rebatizada em fevereiro de 1933, conforme nota publicada pela Folha da Manhã no dia 17 daquele mês:
A Rua Haiti no Jardim America — O sr. prefeito da capital assignou, hontem, o acto n. 419, do seguinte theôr:
Artigo unico — Fica a rua Igarahy, sita no Jardim America, incorporada á rua Haiti, sob essa denominação, por seu [sic] seu prolongamento natural.
O problema aqui é que, pelos mapas da época, como o Sara Brasil, de 1930, reproduzido abaixo, a Igarahy era a Rua Haiti, e não seu prolongamento. Ela ficava entre as ruas Caconde e Guarará, começando na Alameda Campinas e terminava na Pamplona, exatamente como a Rua Haiti é hoje.
Em 1930, o projeto número 4, da Câmara Municipal, decretava a extensão da Igarahy até a Rua Cravinhos, conforme publicado no Correio Paulistano, em 19 de janeiro daquele ano. É possível que essa extensão seja a atual Travessa Ouro Branco, uma passagem para pedestres na altura da Rua Haiti, entre a Rua Pamplona e a Avenida Nove de Julho — que ainda não existia em 1930. Mas também é possível que nada tenha a ver, pois o mesmo projeto decretava a extensão da Caconde até a Rua Presidente Prudente (também do outro lado da Nove de Julho), e essa extensão nunca foi construída.
A população da rua deve ter aumentado nos anos 1930, pois já em 1941 solicitava-se a pavimentação da rua, de acordo com texto publicado na Folha da Manhã em 3 de outubro de 1941, na seção “O povo reclama”. A matéria traz duas fotos, infelizmente de péssima qualidade na reprodução atual.
A Rua Haití [sic] está intransitável — Moradores da Rua Haití [sic], no Jardim América, reclamam contra o lastimável estado em que se encontra a Rua Haití [sic], onde o pedestre mal pode andar e os veículos não conseguem transitar. Tratando-se de uma rua totalmente construída e de pequena extensão, pedem para as autoridades municipais voltarem suas vistas para aquele cantinho da capital, onde, quando chove, se forma enorme barreiro e, quando faz sol, gigantesco depósito de pó.
Essa situação não demorou muito para ser resolvida: a taxa de pavimentação referente à via foi cobrada dos moradores em abril de 1943, conforme anúncio reproduzido abaixo, publicado na Folha da Manhã de 27 de abril daquele ano.
Sem dúvida, a pavimentação deve ter atraído mais moradores para lá, e imóveis na rua passaram a ser anunciados com mais pompa. Um anúncio de 5 de janeiro de 1947 descrevia a Haiti assim: “Rua asfaltada, com todos os melhoramentos e junto de condução.” Neste caso, pelo menos, todos os atributos ainda são verdadeiros. A condução, é verdade, não está mais imediatamente ao lado, como era na época em que os bondes passavam pela Rua Pamplona — e com ponto bem na esquina, como vimos anteriormente —, mas hoje está um quarteirão além, na Avenida Nove de Julho, que pode ser alcançada por meio da Travessa Ouro Branco, ao lado do atual Carrefour, que é, como também já vimos, quase uma continuação da Rua Haiti.
Mesmo estreita, tudo indica que a rua tinha duas mãos de direção naquela época. Em 23 de fevereiro de 1952, foi anunciado que a rua passaria a ter mão única, da Alameda Campinas para a Rua Pamplona, da mesma maneira que é hoje — ininterruptamente ou não; não foi possível verificar.
Nas buscas que fiz no acervo da Folha (que permite a busca pela frase “Rua Haiti”, algo que a busca no acervo do Estadão não permite, dificultando a localização de ocorrências), a partir dos anos 1970, a rua era citada apenas em anúncios imobiliários e de empregos, estes publicados por empresas cuja sede é na rua. Antes disso, ela chegou a aparecer como endereço de vítimas de acidentes, que costumavam ser publicados no noticiário e em menções nas colunas sociais, como esta, de 19 de julho de 1959.
Em sequência à cerimônia religiosa, o champanha [sic] datado espocou naquela residência da Rua Haiti, onde são anfitriões os pais da noiva, em brinde aos noivos.
Ou esta, de 20 de novembro de 1955, com os exageros característicos:
Na quarta-feira, a senhorita Marilu Vilalobos fazia anos e, por isso, reuniu os seus amigos, que não são poucos, em sua casa da Rua Haiti, para um coquetel movimentadíssimo, que terminou de madrugada na pista do “Lord”, para ouvir Amália Rodrigues, mais bela do que nunca, com seus fados do coração.
A nova “era de esquecimento” da rua começou quando prédios recentes erguidos nas duas ruas imediatamente paralelas passaram a ocupar toda a profundidade da quadra, contando, para isso, com a venda das casas que ficavam na Rua Haiti, úteis apenas pelos seus terrenos. Assim, a Rua Haiti convive, hoje, com muros altos sem portão, de prédios cuja entrada fica do outro lado do quarteirão. O único dos prédios que não levantou um muro ali colocou uma grade e usa o local para depositar lixo.
Um dos prédios que ignoraram a Rua Haiti foi o MyWay (com seu ridículo nome anglicista), na Rua Guarará, dono de um dos muros. O “croqui de localização sem escala” de seus anúncios atá trazia a rua, curiosamente ignorando a Caconde, que fica entre a Haiti e a Estados Unidos. De fato, uma grande diferença em relação aos dois anúncios citados neste texto.
Algumas poucas casas resistem na rua, quase todas (senão todas) com fins comerciais. Não é como era em 1929, num cenário que a Folha da Manhã criticou, em 15 de dezembro, ainda referindo-se à questão do ponto de bonde na esquina da antiga Rua Igarahy:
Trata-se, conforme dissemos da última vez, da Rua Igarahy, aberta no meio do mato e com duas casas apenas de um lado. (…) Com o poste colocado na pseudo rua Igarahy, (…) basta dizer que a [rua] não foi ainda aberta ao trânsito público.
A rua não fica mais no meio do mato, ainda tem pelo menos duas casas de cada lado, não tem mais o bonde na esquina e passam veículos por ela. Mas ela voltou a ser pouco habitada e parece servir apenas como estacionamento para quem trabalha por aí. Os muros construídos geraram uma “discriminação” que dificilmente poderá ser combatida. Se o nome “Haiti” já soava ao mercado como menos charmoso que “Caconde” e “Guarará”, imagine agora que a rua é margeada por concreto sem face?
A única exceção é uma pequena pracinha, na metade do quarteirão de lado ímpar. Ali, a calçada “dá a volta” em uma pequena área verde (embora margeada pelos mesmos muros de prédios da Rua Caconde), que hoje está mais bem cuidada do que estava em 2011, quando o Google Street View passou por lá pela última vez. Até 2010, nem mato havia ali: a rua simplesmente abria-se, e a área era usada como estacionamento. Talvez esta tenha sido a única melhoria feita na Rua Haiti ao longo das últimas décadas.
Excelente, muito bacana mesmo. E uma correção no que eu te falei antess: quem morou ali foi o Rodney, não o Rado, que morava na rua Tatuí, ali perto. E a rua virou uma servidão inútil. Eu não passo lá desde os anos 1980, quando o Rodney já não morava mais lá.