Os passes de bonde do secretário

Sebastião Nogueira de Lima, Jorge Chaves (prefeito de Piracicaba) e Sud Mennucci, em novembro de 1944

Sebastião Nogueira de Lima, Jorge Chaves (prefeito de Piracicaba) e Sud Mennucci, em novembro de 1944

Sebastião Nogueira de Lima foi interventor federal no estado de São Paulo por menos de duas semanas, entre outubro e novembro de 1945. Três anos depois, resolveu começar a escrever suas memórias, datilografadas e devidamente encadernadas em oito volumes. O título da obra é Uma História para os meus Netos e sua justificativa aparece logo no início da introdução:

Zenaide [esposa de Sebastião] e eu conversávamos sobre a vida de nossos antepassados, em grande parte esquecida ou mesmo ignorada. E lamentamos que não houvesse qualquer apontamento histórico sobre a vida de cada um [desses] que nos deixaram nome e tradições de honradez e trabalho. Para que os nossos filhos e netos não façam, mais tarde, o mesmo reparo, Zenaide lembrou que eu deveria escrever a história de minha vida, particular e de homem público. Teria, é certo, alguma cousa para contar aos nossos descendentes.

Não sei se seus filhos e netos acharam a obra útil, porém um de seus bisnetos, Renato Dias (um dos meus companheiros de estádio), encontrou-a quase esquecida e decidiu compartilhá-la comigo. Curiosamente, meu bisavô Sud Mennucci (à direita, na foto acima) foi amigo de Sebastião e aparecia em algumas das fotos e era citado em alguns trechos do texto. Essa é uma daquelas coincidências que nenhum dos dois poderia prever, quase setenta anos atrás.

Ao longo das mais de mil páginas páginas dos livros — aí incluídos documentos da época, cartas, atas, recortes de jornais, fotos e tudo quanto é memorabília —, Sebastião conta com detalhes diversas passagens de sua vida, inclusive sua atuação como interventor federal, procurador-geral do estado e secretário da Justiça e de Segurança Pública. Mas a passagem que achei que mais tem a ver com este site foi a que antecedeu sua posse como secretário da Educação. Deixo o restante da narrativa com Sebastião Nogueira de Lima. No final, será fácil perceber por que este texto veio parar aqui.

E veio a exoneração [de vários secretários], depois de uma curta viagem do interventor [Fernando Costa] ao Rio de Janeiro. Os jornais passaram a noticiar quais os nomes prováveis dos novos secretários. Entre eles, o meu também.

O fato é que, no dia 23 de novembro de 1943, fui chamado ao Palácio dos Campos Elíseos, convidado pelo interventor federal. Eu já não era tão ingênuo como das outras vezes, mas, assim mesmo, fui ao palácio do governo sob a única impressão de que, talvez, fosse necessária a minha presença para tomar parte em alguma reunião, o que era comum e justificável naquele dia. Em casa, Zenaide e os filhos ficaram na expectativa de alguma novidade.

Ao chegar ao Palácio, notei uma especial atenção para a minha pessoa. Fui, logo, [conduzido] ao gabinete do interventor. E o Fernando Costa, com aquela mesma bondade e repetida prova de confiança no seu amigo e colaborador, disse-me que havia, naquela data, atendido ao pedido de exoneração dos dois referidos secretários: da Justiça e da Educação. Convidou-me, então, para assumir a pasta da Educação e Saúde Pública. Senti uma profunda comoção e duas surpresas. Uma, a de ser secretário de estado; outra, a de ir para a Educação, quando estaria melhor na Justiça, o que, entretanto, não revelei.

Aceitei o convite, num grande abraço de agradecimento, e prometi corresponder à sua prova de confiança. O secretário da Justiça seria o Dr. Marrey Júnior, também convidado naquele mesmo dia. Ao sair do gabinete do interventor, fui cumprimentado pelas pessoas do Palácio, principalmente por Dona Anita Costa, esposa do Fernando Costa, e seus filhos, que tinham por mim muita estima, por saberem que eu era amigo e um colaborador muito dedicado e sincero de seu marido e pai. (…) Do Palácio, telefonei para Zenaide, que recebeu a notícia com muita satisfação. Mandei-lhe um grande abraço.

Dispondo-me a regressar a minha residência, eis que foi posto à minha disposição um automóvel oficial. Em caminho, meditei nos inesperados acontecimentos da vida e em dois passes de bonde que estavam na minha carteira. Quando fui chamado ao Palácio, tomei o meu bonde, o bonde do Jardim Paulistano. Ao pagar a passagem, o condutor, para troco, fez a clássica pergunta: “O senhor aceita passe?” Respondi que aceitava. Era o passe da minha condução, e teria de regressar, também de bonde.

Os dois passes, tenho-os ainda, como lembrança desse episódio da minha vida pública e prova de que, naquele dia, eu era ainda um homem sem cálculos e ambições. Os passes vão adiante registrados. Aliás, devo dizer que são as duas mais belas “passagens” da minha vida.

Passes de bonde paulistanos de 1943, do acervo de Sebastião Nogueira de Lima

Passes de bonde paulistanos de 1943, do acervo de Sebastião Nogueira de Lima

Os passes estão colados na página, logo abaixo do parágrafo. Só por isso, dá para se ter uma ideia da riqueza de detalhes acumulada nessas memórias. E é inevitável imaginar que, hoje em dia, um figurão candidato a vagas de confiança dificilmente usaria transporte público para se reunir com o chefe do Executivo, ainda que a vaga em questão seja de um escalão bem inferior ao de um secretário de estado.

Alexandre Giesbrecht

Nascido em 1976, Alexandre Giesbrecht é publicitário. Pesquisa sobre a história do futebol desde os anos 1990 e sobre a história da cidade de São Paulo desde a década seguinte. Autor dos livros São Paulo Campeão Brasileiro 1977 e São Paulo Campeão da Libertadores 1992, já teve textos publicados em veículos como Placar e Trivela.

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2 respostas

  1. Mais coincidências? Meu pai (seu avô, Alex) morava com os pais dele (Hugo e Rosina) a menos de um quarteirão do Palácio; meu pai formou-se em 1943 na FFCLUSP, em Química, que ficava em diagonal ao palácio, na Glette, e ficava em frente à casa em que ele morava. Sua avó possivelmente já namorava com ele a essa altura, e deveria saber de toda essa história antes de ela acontecer, contada pelo futuro sogro, Sud.

  2. Thais Reder disse:

    QUE COISA MAIS LINDA,QUERIA PODER LER, TEM NAS LIVRARIAS? OU FICOU EM POSSE DE FAMILIARES? QUE LINDA ZENAIDE, QUERIA VER SEU ROSTO,OS PASSES ,OS FILHOS, AS ESPECTATIVAS,A ALEGRIA, O JEITO DE SER INFORMADO, PEGO DE PRESENTE SURPRESA.EU TAMBÉM ESTOU ESCREVENDO UM LIVRO PARA MINHAS NETAS,JA TEM SEISCENTAS PÁGINAS,MAS NÃO TEM NADA DE GRANDIOSO ASSIM,SOU UMA DONA DE CASA SEM EXPRESSIVIDADE ALGUMA,MAS EU QUERO QUE ELAS SAIBAM QUEM EU FUI, E O QUANTO EU AS AMO.QUE DIA FELIZ ESTAR AQUI LENDO TANTA COISA BOA…

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